O singular “A vida dupla de Véronique” (1991) é um dos últimos trabalhos na carreira do cineasta polonês Krzysztof Kieślowski, apenas antecedendo a sua afamada “Trilogia das cores” (1993-94). Trata-se de um filme que expressa muita delicadeza e ternura. Nas palavras do próprio autor em sua autobiografia, é uma história sobre “sensibilidade”, “pressentimentos” e “intuição”.
Irène Jacob (ganhadora do prêmio de melhor atriz em Cannes pelo filme) interpreta duas mulheres idênticas que vivem no mesmo período, mas em países diferentes: uma soprano polonesa de um coral (Weronika) e uma professora francesa de música (Véronique). Embora não se conheçam, elas compartilham um intenso vínculo, misterioso e inexplicável, em torno do qual a narrativa é centrada.
A cinematografia é estilizada com filtros coloridos e saturados, além de lentes especiais, uso de espelhos e reflexos que, no conjunto, criam significativo efeito onírico e etéreo. Destaca-se também a música erudita, marcante, criada pelo compositor Zbigniew Preisner, amigo do diretor.
O caráter de estranheza do filme é sutil, mas efetivo e crescente, a partir de pequenas situações insólitas do cotidiano e eventos porventura sobrenaturais. A grande questão que se impõe é a natureza da ligação profunda entre aquelas duas mulheres: o que seria? E qual o significado do falecimento de Weronika na vida de Véronique?
Essas perguntas evocam, como uma possibilidade, a figura do “duplo” ou doppelgänger, que advém de antigas lendas europeias e foi marcante para a literatura fantástica (como em Poe, E.T.A. Hoffmann, Maupassant e outros), e até hoje inspiradora no cinema de horror.
Otto Rank, psicanalista do círculo de Freud, escreveu em 1914 um estudo sobre o tema, analisando um dos primeiros filmes de terror, “O estudante de Praga” (1913, de Stellan Rye), além de várias obras e autores da literatura fantástica. Rank observa que, na ficção de horror, o duplo costuma aparecer de forma a atrapalhar a vida amorosa dos(as) protagonistas, o que seria interpretável como uma intuição artística sobre a relação de mútua exclusão entre o amor por si mesmo (“narcísico”) e o amor objetal (que se direciona ao mundo exterior). Em psicanálise, é o conceito de narcisismo que dá conta desse dilema presente na economia psíquica de cada um de nós.
No filme de Kieślowski, é curioso notar como a morte do “duplo” de Véronique é seguida precisamente pela fase em que ela se apaixona pelo marionetista Alexandre. Na ficção, assim, a queda do “duplo” pode aludir, muitas vezes, a uma espécie de marco de passagem na vida psíquica, de luto por uma parte de si perdida no processo de se tornar sujeito, doravante possibilitando novos investimentos libidinais. Nesse sentido, sugere, pois, uma alegoria sobre a “perda de ser” (ou “falta-a-ser”) que todos passamos para nos constituir como sujeitos desejantes, conforme atesta a psicanálise lacaniana.
Por outro lado, para além da questão do duplo, é fato que Kieślowski, em suas obras, apreciava enfatizar as ligações, laços e vínculos entre as pessoas. Consta que em 1995 ele proferiu uma conferência com essas belas palavras:
“Advém de uma convicção profundamente enraizada que, se há algo que vale a pena fazer em prol da cultura, é tocar em assuntos e situações que unem as pessoas, e não naqueles que as dividem. Há muitas coisas no mundo que dividem as pessoas, como religião, política, história e nacionalismo. Se a cultura é capaz de alguma coisa, então é de encontrar aquilo que nos une. (…) Os sentimentos são o que une as pessoas, porque a palavra “amor” tem o mesmo significado para todos.”.
De fato, seu filme, além de ser visualmente encantador e uma insólita história de amor, convida-nos à fruição da música, das artes cênicas e da literatura. É assim, também, em alto grau, uma declaração de amor à arte em geral e às expressões culturais, bem como à criação de laços entre as pessoas por meio delas.
Por Marlos Terêncio
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