A guerra que cada um trava consigo – reflexões sobre “Além da linha vermelha”

Em 1998, era lançado um filme do gênero de guerra muito diferente de tudo que já havia sido produzido no cinema, e que permanece original até hoje. 

“Além da linha vermelha” (The thin red line), de Terrence Malick, tem hoje o status de “cult movie”, porém não cativou de imediato o público a não ser pelo grande elenco que trazia.

Como contraponto, vale lembrar que, no mesmo ano, os cinemas receberam com muito mais entusiasmo comercial “O regaste do soldado Ryan” (Saving private Ryan) de Steven Spielberg, um drama de guerra tecnicamente impressionante, mas que, entretanto, em nada inovava a velha fórmula de mostrar a vitória norte-americana sobre as forças do “mal”, no caso, da Alemanha nazista.

“Além da linha vermelha”, por sua vez, ilustra a Batalha de Guadacanal (1942-43) na Segunda Guerra Mundial, liderada por tropas aliadas norte-americanas contra o Império do Japão. Mas neste caso, não há ênfase na vitória das tropas aliadas, ainda que isso seja brilhantemente figurado.

Com sua conhecida característica de filmagem contemplativa, que enfatiza longos “takes” da natureza selvagem intercalados com a narração dos pensamentos dos personagens por meio do recurso de “voice-over”, Terrence Malick demonstra que não há vencedores na guerra, visto que ambos os lados padecem em sofrimento. 

Porém, mais que uma simples mensagem pacifista, o filme trata de refletir sobre a questão do conflito de forma deveras profunda. O conflito armado entre soldados de países inimigos é apenas o pano de fundo e a ilustração metafórica do conflito que realmente interessa ao diretor — nosso conflito interno, aquele que cada um trava dioturnamente dentro si.

Assim inicia o filme, com o seguinte questionamento do protagonista Witt: “O que é essa guerra no coração da natureza? Por que a natureza rivaliza consigo mesma? A terra compete com o mar? Existe um poder vingador na natureza? Não apenas um poder, mas dois?”. Trata-se de um questionamento filosófico sobre a natureza das coisas e, também, sobre a natureza humana. Isso é patente ao longo de todo o filme, na medida em que vários personagens são apresentados (não há um único protagonista) com ênfase maior em seus questionamentos internos. Temas como o sentido da existência, a confiança no amor e a crença em uma divindade habitam os pensamentos dos soldados antes, durante e após as batalhas no mundo exterior.

A percepção do conflito interno entre diferentes forças é a própria base da constituição da psicanálise. Freud observou em si mesmo e nos demais a existência de instâncias psíquicas em eterno conflito. Conflito que provoca sofrimento e o exaurimento constante das energias do sujeito, tal como um campo de batalhas onde ambos os lados terminam com inúmeras baixas. A maior parte dessas batalhas, no entanto, acontece abaixo do limiar da consciência, sendo que delas temos somente alguns sinais.

Na segunda metade do filme, outro personagem se questiona: “Esse grande mal. De onde ele vem? Como ele invade o mundo? De qual semente, de qual raiz ele cresce? Quem está fazendo isso? Quem está nos matando? Roubando nossa vida e luz. (…)  Essa escuridão está em você também? Você também passou por esta noite?”. Podemos ler essas reflexões como intuições sobre a existência do inconsciente e de nossa cisão.

Não somos, portanto, indivíduos – etimologicamente, um indivíduo é “aquele que não se divide”. Há uma cisão em nossa alma, somos seres divididos ou fragmentados, sendo que cada fragmento ou instância busca realizar suas próprias finalidades, entrando em choque com as demais.

Embora essa situação seja estrutural, na clínica psicanalítica observamos uma série de conflitos internos que são, na verdade, desnecessários, posto que, quando devidamente iluminados pela consciência, se dissolvem. E quando o conflito cessa, deixa em seu lugar um manancial de energias à disposição do sujeito para a realização criativa e para uma vida mais satisfatória — ainda que nunca totalmente.

Terrence Malick tem ciência disso. Em sua película, há toda uma simbologia mística que aponta para a esperança de superação do conflito interno e externo, de uma vida mais pacífica, serena, prenhe de contentamento e significado. A psicanálise nos lembra, no entanto, que não há possibilidade de superar totalmente o conflito interno, tal como não há fim da luta pela sobrevivência na natureza selvagem. 

A morte parece ser a imagem maior do fim de todas as batalhas, da paz absoluta. Ou seja, em última instância, o desejo de viver demanda sempre alguma disposição ao conflito, a haver um tensionamento entre aquilo que somos e aquilo que desejamos ser, o que nos instiga ao movimento pelo mundo em busca de satisfação.

Por Marlos Terêncio

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