David Cronenberg – Horror pulsional

Quando pensamos nos grandes cineastas do gênero fantástico e, particularmente, do âmbito do horror, é impossível não lembrar do canadense David Cronenberg e suas obras estranhas e transgressoras.

Cronenberg é visto como um dos grandes diretores da atualidade, um mestre do cinema de horror, e, ainda, considerado “o pai” do subgênero intitulado “horror corporal” ou body horror, que trabalha, geralmente de forma bastante explícita, os limites e possibilidades de transformações perturbadoras no corpo humano.

O body horror teve forte impacto no cinema de terror dos anos 80 (um período bastante criativo!), e se mantém influente até hoje. Em Cronenberg, essa característica é marcante desde seus filmes iniciais – como em Shivers (1975) e Rabid (1977) –, consolidando-se nos clássicos cult dos anos 80 – como em Scanners (1981), Videodrome (1983), A Mosca (1986) e Gêmeos – Mórbida Semelhança (1988) –, e tem, inclusive, uma retomada de peso em seu recente Crimes do futuro (2022).

No entanto, algo que distingue Cronenberg é o uso do body horror não apenas para causar fortes reações de repugnância e angústia no espectador, mas, acima de tudo, para incitar reflexões sobre temas de cunho psicológico e social (tal como, à sua própria maneira, George A. Romero fez no subgênero de “mortos-vivos”). E isso é feito com muita mestria, sempre trazendo provocações em relação à sexualidade, à violência e aos impactos do avanço da tecnologia sobre a vida humana.

Esse estranho entrelaçamento entre corpo, sexualidade e violência presente em sua obra evoca os dilemas subjetivos a partir daquilo que, no âmbito da psicanálise, chamamos de pulsão – um de seus conceitos fundamentais. Para Freud, a pulsão é uma energia fundamental que anima todo sujeito humano, no limite entre o somático e o psíquico, promovendo uma tensão que exige alguma forma de descarga ou, em outras palavras, satisfação. Ela realiza, assim, uma pressão constante, que nunca cede ou desiste.

Freud sempre destacou o caráter traumático, perigoso e angustiante que as pulsões assumem para o sujeito, pois o ‘eu’ não faz mais do que se defender dessa energia de diferentes formas (os diferentes “destinos” da pulsão). Aliás, dizia Freud, inclusive, que o diabo nada mais é do que a personificação da vida pulsional inconsciente reprimida.

Não por acaso, o body horror geralmente envolve alterações corporais que surgem associadas a um processo interno, irreversível e incontrolável. Em Cronenberg, muitos filmes parecem ilustrar esse campo da energia pulsional que se impõe de forma violenta e avassaladora, que “não pede licença”, transformando sem volta o corpo e o psiquismo.

Mas é, principalmente, na descrição da sexualidade que se delineia a ideia de pulsão. Algo genial em Freud, a partir deste conceito, foi romper (em 1905!!) com a noção de instinto aplicada ao âmbito humano: ao contrário dos animais, a sexualidade humana não é fixada biologicamente e ligada, de forma necessária, à reprodução. O homem não nasce com quaisquer objetos predefinidos para a sua satisfação. Muito pelo contrário: os objetos são sempre variáveis, contingentes e definidos nas vicissitudes da vida de cada sujeito. Como disse Lacan, o objeto da pulsão é “totalmente indiferente”, visto que o homem é um ser imerso na linguagem.

E é, justamente, essa noção de uma sexualidade “perversa e polimorfa” no sentido de perverter os objetos de desejo e as formas de satisfação ditas “normais” – que também transparece nos filmes de Cronenberg, como em Videodrome (1983), Naked Lunch (1991), M. Butterfly (1993), Crash (1996) e Crimes of Future (2022). E, aliás, inclusive no filme que demonstrou o interesse do próprio cineasta nas vidas e obras de Freud e Jung Um método perigoso (2011).

Não há apaziguamento possível para o suposto “mal” que nos assola: as pulsões de vida (sexuais) e de morte (destruição). Cada qual precisa lidar singularmente com “isso” (segunda tópica freudiana) que pressiona e assombra.

É essa uma das lições que aprendemos não somente com a psicanálise de Freud e Lacan, mas também com o cinema de Cronenberg.

Por Marlos Terêncio

Publicado em @surrealidade.psiquica

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