Sabe-se da enorme influência da psicanálise freudiana e, principalmente, de “A interpretação dos sonhos” (1900), sobre os surrealistas, mas, afinal, como foram os contatos entre seus expoentes e Freud?
Há alguns desencontros e mal-entendidos que são exemplificativos de uma relação um tanto conturbada entre a psicanálise e as artes, desde os primórdios.
André Breton, autor dos manifestos surrealistas, trocou cartas com Freud e o visitou em seu consultório em Viena em 1921, mas teria sido recebido sem muito entusiasmo – ele relata que o psicanalista limitou-se a agradecer seu interesse e a dizer que confiava muito “na juventude” (Breton tinha 25 anos). É dito que o artista frustrou-se com essa visita.
Breton, mais tarde, dirigiu algumas críticas a “A interpretação dos sonhos” (1900) em seu próprio livro, “Os vasos comunicantes” (1932). Freud prontamente lhe respondeu em três cartas seguidas, finalizando a última desta forma:
“E agora uma confissão, que você deve aceitar com tolerância! Embora eu receba tantas evidências do interesse que o senhor e seus amigos têm pela minha pesquisa, não estou em posição de esclarecer para mim mesmo o que é o surrealismo e o que ele quer. Talvez eu, que estou tão distante da arte, não seja de modo algum adequado para entendê-la”.
Homem de gosto austero, o primeiro psicanalista era apaixonado pela arte clássica e renascentista – o que transparece em toda a sua obra –, mas relutava em dar atenção e valor às vanguardas artísticas de sua época.
Também Salvador Dalí era interessadíssimo pela psicanálise e por Freud, sendo que tentou visitá-lo três vezes em Viena. O encontro somente aconteceu em 1938, quando Freud já morava em Londres. Na ocasião, Dalí mostrou-lhe seu quadro A Metamorfose de Narciso (1937), mas, segundo se diz, só obteve de Freud um comentário enigmático: “Nas pinturas clássicas procuro o inconsciente; em uma pintura surrealista, o consciente”.
Dalí inclusive aproveitou a ocasião para fazer estudos para um retrato de Freud. Contudo, o artista, tal como Breton, teria ficado desapontado com o encontro.
Por outro lado, no dia seguinte, em carta ao amigo Stefan Zweig, Freud declarou:
“Até então, eu estava inclinado a considerar os surrealistas, que aparentemente me escolheram como seu santo padroeiro, como completamente loucos (digamos, 95%, como o álcool). O jovem espanhol, no entanto, com seus olhos cândidos e fanáticos e seu inegável domínio técnico, fez com que eu reconsiderasse minha opinião. De fato, seria muito interessante investigar analiticamente como um quadro como esse veio a ser pintado”.
Segundo ele, essa obra desafia a noção de arte, pois a “proporção de material inconsciente e tratamento pré-consciente” manifestos na pintura não permanecem dentro de “limites definidos”. Mas demonstra não ter uma opinião definitiva sobre o assunto: “De qualquer forma, essas são questões psicológicas sérias”.
Esses diálogos um tanto frustrados e desencontrados de Breton e Dali com Freud dão exemplo de alguns tensionamentos entre a psicanálise e as artes em geral. Há, sem dúvida, um movimento constante de atração e repulsão entre ambos os campos, e uma certa dificuldade de compreensão de um lado pelo outro – tal como duas pessoas muito atraídas entre si mas que falam línguas diferentes.
Como sugere Rivera (2005), esses desencontros, no entanto, produzem algo novo, convocando a criação tanto dos artistas como dos psicanalistas. De fato, a quantidade de produções de mútua inspiração que continua surgindo, quase 100 anos depois, bem demonstra isso.
Referências:
Rivera, T. Arte e psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.
Freud, S. Letter from Sigmund Freud to Stefan Zweig, July 20, 1938. Letters of Sigmund Freud 1873-1939 51:448-449.
Breton, A. Littérature (nouvelle série) n° 1, mars 1922, p.19.
Davis, F.. Three Letters from Sigmund Freud to Andréa Breton. J Am Psychoanal Assoc, 21: 127, 1973.
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