Por Marlos Terêncio e Adriana Cândido da Silva
O tema do luto tem ganhado grande repercussão em virtude do momento extremamente difícil que estamos vivendo no Brasil e no mundo. Em razão da pandemia de coronavírus, sabemos que, há mais de um ano, inúmeros brasileiros têm vivenciado a intensa dor da perda de entes queridos. Trata-se de um processo de luto bastante difícil, em virtude das peculiaridades da situação em que vivemos – como se sabe, não costuma ser possível a devida despedida de seus familiares, pois que o contato é evitado no tratamento intensivo em hospitais e, o que é ainda pior, após o falecimento. Isso não pode deixar senão uma lacuna, um vazio na possibilidade de representação psíquica da perda.
As peculiaridades das perdas na pandemia, com a ausência de marcos simbólicos/culturais tradicionais como a ritualística do enterro, dificulta precisamente a simbolização da ausência. Por conseguinte, a sensação de que a morte não aconteceu, de que tudo não passou de um pesadelo, pode perdurar muito mais tempo do que costumava anteriormente.
De acordo com a psicanálise, o luto é uma forma de sofrimento que demanda um rearranjo de nossas relações com o mundo e com nós mesmos em virtude da subtração de algo ao qual estivemos intimamente ligados. Se observarmos com atenção, verifica-se que nossa energia psíquica se apega a seus objetos de amor e não renuncia com facilidade àqueles que se perderam, mesmo quando há possibilidade de fazer substituições. Como dizia Freud, assim é o luto.
O trabalho psíquico que se faz com o luto é uma tarefa lenta e dolorosa. Gradualmente, precisamos deixar de investir nossa energia psíquica naquela pessoa ou naquilo que foi perdido. Passa-se então por uma transformação, que inaugurará uma nova relação com o que foi subtraído – ou seja, simbolizando a perda.
No luto, há uma dolorosa oscilação entre reconhecimento e negação daquilo que deixou de existir. Para que o processo seja bem-sucedido, é necessário o reconhecimento doloroso de que nossa realidade foi alterada. Não por acaso, os trabalhos clássicos sobre o luto de Elizabeth Kübler-Ross se referem a cinco fases: negação, raiva, barganha, depressão e aceitação. Embora não seja regra passar por todas essas fases, entende-se que a aceitação é a etapa essencial ao trabalho de luto. A partir dela, há uma liberação de energia psíquica que nos capacita a novas ligações afetivas e a novos projetos, favorecendo um rearranjo de investimentos psíquicos.
Seja qual for o tipo de perda, é importante atravessar o período de negação, pois tudo que é negado não pode ser elaborado, simbolizado, tornando-se então algo traumático, que não se supera. Por isso mesmo, o luto não deve ser abreviado – cada qual tem seu tempo para elaboração. Assim, faz-se essencial nos conscientizarmos de que não há remédio para o luto, não é possível evitá-lo ou apressá-lo sem incorrer em custos psíquicos ainda piores, como os quadros depressivos.
Se não há uma possibilidade de se fazer um reinvestimento libidinal após a perda, verifica-se que o sujeito fica com um excesso de energia psíquica, favorecendo, assim, um “luto mal elaborado”, próximo ao quadro depressivo. Nestes casos, o trabalho analítico pode entrar em cena para propiciar um desprendimento libidinal narcísico, com o objetivo de favorecer novos arranjos.
O luto está presente para todos nesta pandemia, inclusive para os que felizmente não perderam a vida de entes queridos. Há uma forma de luto que consegue ser mais abrangente, certamente afetando todos. Trata-se do luto pela vida que tínhamos antes da pandemia. Toda a civilização, neste momento, sofre por uma vida que não existe mais, e sobre a qual ainda há grande incerteza acerca do que será possível reconstituir.
Muitas tem sido as nossas perdas: da liberdade de circular livremente, da possibilidade de nos reunirmos, das antigas condições de trabalho, estudo e lazer que tínhamos por garantidas. E, ainda, perdas financeiras, do contato físico com nossas redes de apoio, das rotinas e das atividades que estruturavam o cotidiano. Em suma, um acúmulo de adversidades que, somado às perdas por falecimento, pode exceder a capacidade de resiliência de cada um.
Por conseguinte, é válido buscar um equilíbrio – muito pessoal – entre o impulso de “seguir a vida” e, por outro lado, entrar em contato periódico com os sentimentos gerados pelo processo de luto, tais como a tristeza, a raiva e a culpa. Pois, muitas vezes, o excesso de ocupações diárias expressa a tentativa frustrada de “nada querer saber” sobre o que se está sentindo em relação à perda. Essa atitude, por sinal, dificulta a elaboração psíquica e a chance de um reestabelecimento integral do sujeito.
Desabafar, trocar ideias, ouvir e ser ouvido, enfim, compartilhar os sofrimentos são atitudes essenciais em relação a esse momento tão delicado em que vivemos: constituem etapa crucial para a passagem da dor em seu estado “cru”, indizível, a um sofrimento que pode ser simbolizado e, quiçá, superado.
Por fim, cada qual pode encontrar sua forma particular de lidar com este período excepcional, de acordo com suas necessidades e seus recursos, sendo essencial ter um pouco de flexibilidade e criatividade para encontrar soluções que nunca foram demandadas antes. Há que se inventar novas formas de satisfação, favorecendo a construção singular de um modo de viver esta época. O trabalho de luto demanda, em grande medida, uma autorização para aprendermos com o sofrimento e nos transformarmos a partir dele. Advém, então, a permissão voluntária para a retomada dos processos de desenvolvimento pessoal e profissional. É o caso de nos reinventarmos, ainda que permaneçamos os mesmos, em grande medida.
REFERÊNCIAS
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