Sonhos, cinema e psicanálise (1)

Há íntimas e talvez infinitas relações entre os sonhos (a experiência psíquica de sonhar) e o cinema – este último, não por acaso, conhecido desde seu início como “fábrica de sonhos”.

Podemos começar abordando a ideia de “ilusão”, comum ao sonho e ao cinema. O cinema é visto como uma arte da ilusão, o que começa na própria forma como se produz o efeito de movimento na tela de projeção: vários quadros ou frames por segundo que nossos cérebros interpretam como movimento.

Freud certa vez comentou que falar em “ilusão” não equivale a falar de um “erro”. Ele entendia o campo do ilusório como derivado dos desejos humanos, tal como as fantasias, os delírios e… os sonhos.

Ambos, sonhos e cinema, evocam a “ilusão” também no sentido de que suas imagens e sons aparentam “realidade” – suas cenas mobilizam, emocionam, produzem identificações e repulsas, expressam e produzem desejos. Todavia, o efeito se desvanece quando as luzes se acendem e termina a projeção do filme, bem como quando acordamos de um sonho.

Fazendo uma analogia com o cinema, sonhos são uma produção de imagens e sons projetados na “tela” psíquica, gerando efeito de realidade. Isso acontece de forma alucinatória, isto é, para o sonhador, essas cenas são confundidas com percepções, tal como nas alucinações – o que equivale a dizer que, mesmo quem não é psicótico experimenta, todas as noites, algo do campo da psicose, da dita “loucura”.

Tanto nos sonhos como no cinema, apresentam-se pensamentos, ideias, de forma figurativa. Ou seja, em ambos os casos, há palavras que são transformadas em imagens. Aliás, para Jean-François Lyotard, haveria mesmo uma confluência entre a linguagem do sonho e a da arte em geral. E mais: em ambos os casos, essas imagens são cenas que representam fantasias.

Entre as sete formas de arte, o cinema é o mais semelhante ao sonho em sua fenomenologia. E é do sonho que se nutre como inspiração, em grande medida, desde seus primórdios. O cinema nasce no mesmo período em que Freud criava sua psicanálise. Naquela época, Georges Méliès, um ilusionista (voltamos aqui ao tema da ilusão), foi o primeiro a ver o cinema não só como possibilidade de registro documental: seus vários filmes de curta metragem enfatizaram, desde o princípio, o fantástico, o estranho e o onírico, como em “O solar do diabo” (1896), “O sonho do astrônomo” (1898), e no famoso “Viagem à lua” (1902).

Historicamente, essa relação entre o cinema e o mundo onírico irá, cada vez mais, se aprofundar, com a apropriação da técnica cinematográfica por movimentos artísticos, como o expressionismo alemão – que enfatizava os estados psíquicos ao invés de tentar replicar a realidade (a exemplo de “O gabinete do Dr. Caligari” [1920] e “Nosferatu” [1922]) – e o surrealismo – cujas obras são propositalmente expressas como sonhos, tal como no magistral “Um cão andaluz” (1929), de Luis Buñuel e Salvador Dali.

O cinema, portanto, já nasce ligado ao fantástico e ao mundo dos sonhos, e provém daí grande parte do fascínio que exerce em nós. Assistir a um filme é, em certa medida, como “sonhar acordado”, devanear, fantasiar – algo que, conforme mostra a psicanálise, fazemos, na verdade, o tempo todo. Isso equivale a dizer que estamos sempre sonhando, mesmo quando em vigília.

Segundo Freud e Lacan, a fantasia não é outra coisa senão nossa realidade – e o cinema, por sua vez, expõe de forma escandalosa essa relação.

Por Marlos Terêncio

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