Sonhos, cinema e psicanálise (II)

Como mencionado em outro post, o cinema nasceu na mesma época em que Freud criava a Psicanálise. O marco inaugural de sua invenção foi, precisamente, o livro “A Interpretação dos Sonhos” (1900). Essa obra trouxe uma ótica totalmente inovadora sobre o assunto, que abalou a civilização e influenciou muito, inclusive, as artes.

Em primeiro lugar, Freud observou que os sonhos são os guardiões do sono, ou seja, sua função primordial é evitar que o sonhador acorde. Tal como um projetor de cinema, eles realizam essa função projetando imagens na “tela” da psiquê, isto é, em caráter alucinatório.

Em segundo lugar – e aí vem o principal –, Freud descobriu que o conteúdo onírico está sempre relacionado à realização de desejos do sonhador. Ou seja, o sonho expressa um desejo como se estivesse sendo realizado.

Essa realização de desejos, no entanto, acontece de uma forma muito disfarçada ou distorcida. Isso acontece porque muitos desses desejos são inadmissíveis ao sonhador, tornados inconscientes pelo mecanismo da repressão (ou recalcamento). Há uma “instância censora” em atuação nos sonhos, com a função de não permitir a expressão direta de desejos reprimidos que, via de regra, são sexuais (no sentido amplo de “sexualidade” que a psicanálise revelou) ou agressivos.

O sonho, portanto, é o resultado de uma aliança delicada (uma “formação de compromisso”) entre instâncias psíquicas que estão sempre em conflito. A distorção onírica indica que o significado dos sonhos é cifrado, à maneira de um rébus – aquele tipo de passatempo ou enigma composto por imagens e letras, em cuja solução encontramos uma frase. Essa frase corresponde ao pensamento latente do sonhador, que expressa um desejo.

Os surrealistas foram abertamente influenciados pelas descobertas da psicanálise. Fizeram, assim, questão de expressar suas obras nos moldes da formação onírica, da estética do sonho. Luis Buñuel é um exemplo maior, cineasta que fez grandes filmes até o final dos anos 70.

Há uma gama de consagrados autores cujas obras dão grande destaque aos sonhos. Só para citar alguns: Federico Fellini, Ingmar Bergman, Andrei Tarkovski, David Cronenberg, Alejandro Jodorowsky, Ken Russell, Terry Gilliam e David Lynch. No cinema nacional, temos, por exemplo, José Mojica Marins. Além de enfatizar os estados psíquicos, muitos usam o recurso aos sonhos (e aos pesadelos) como metáforas e alegorias para comentar sobre questões históricas, políticas e sociais.

Entre estes, um dos mais conhecidos é David Lynch, cuja obra parece buscar a expressão dos sonhos em seu caráter mais estranho, e aprofundar-se nos mecanismos de sua formação. Em alguns de seus filmes é possível, inclusive, observar forte compatibilidade com a teoria dos sonhos freudiana.

Mesmo fora do chamado cinema “cult”, os sonhos são um recurso de expressão artística cada vez mais influente, na medida em que há uma tendência clara, em vários gêneros, para roteiros com destaque a aspectos psicológicos.

Não é à toa que Freud chamava os sonhos de “via régia” para o inconsciente. Quem se aventura a neles prestar atenção – em si mesmo ou por meio das artes –, mais cedo ou mais tarde, dá-se conta da presença de estranhas forças em jogo nos bastidores dessas cenas fantásticas produzidas no teatro do psiquismo. Os sonhos são a expressão e a prova viva da eterna luta interior, assim como da insistência de nossos desejos.

Por Marlos Terêncio

Também postado em @surrealidade.psiquica

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