Assim como os sonhos em geral, os pesadelos também sempre intrigaram a humanidade, e isso encontra grande expressão nas artes. A pintura de Henry Fuseli (Johann Heinrich Füssli), intitulada “O pesadelo” (1781), é emblemática nesse sentido, e um marco na relação entre artes e sonhos. Nela são figurados um demônio noturno (ou íncubo) e um cavalo fantasmagórico na presença de uma mulher adormecida. O íncubo encontra-se sentado sobre a dama, pressionando seu ventre e seu peito.
Segundo antigos mitos e crenças populares, os íncubos eram demônios indecentes que visitavam as mulheres durante o sono, pressionando com força o seu peito e violando-as sexualmente. De modo análogo, acreditava-se que os homens podiam ser atacados no sono por demônios femininos que, neste caso, eram chamados de “súcubos”. Nas línguas inglesa e alemã, o próprio significado arcaico da palavra “pesadelo” faz referência a alguma forma de espírito maligno noturno.
Escandalosa, na época de Fuseli, foi a relação entre pesadelos e sexualidade evocada por essa poderosa pintura. Tal relação é, inclusive, vista como precursora das ideias da psicanálise. Conforme visto em outro post, para Freud os sonhos representam desejos como sendo realizados, porém de uma forma distorcida. Ou seja, o sonhador não reconhece seus desejos, em geral ligados à sexualidade, e, caso os percebesse, seria tomado de grande angústia.
Para contornar esse problema, entra em ação uma “instância censora” que distorce o conteúdo dos sonhos tornando-os, aparentemente, sem muito sentido. Fazendo uma alegoria, é como se um fiscal de alfândega (a censura onírica) permitisse a passagem ilícita de mercadorias (os desejos inconscientes) para se ver livre de maiores conflitos com contrabandistas que o incomodam todas as noites, desde que essas mercadorias sejam bem disfarçadas.
O pesadelo, no entanto, quebra a aliança entre as instâncias psíquicas que produzem o sonho, expressando com maior intensidade os desejos não admitidos pela consciência do sonhador. Nesse caso, o sonho dribla a censura onírica com tanta força que se torna impossível manter o sono. Tudo se passa, então, como se o “fiscal de alfândega” fosse surpreendido pela transposição escancarada de mercadorias ilegais, e sua reação de alarme e descontentamento se traduz na angústia da pessoa que desperta.
Essa angústia pode se manifestar, fisicamente, na falta de ar e na sensação de dor torácica, algo que os mitos e a tela de Fuseli bem ilustram a partir da ideia de um ser maligno que oprime o peito do sonhador.
Muitas outras relações podem ser feitas entre essa pintura de Fuseli e a teoria psicanalítica dos sonhos, da sexualidade, da angústia e do estranho. Não por acaso, é dito que Freud possuía uma reprodução dessa imagem.
A pintura “O pesadelo” teve e tem ainda enorme impacto cultural. Além de influenciar pensadores, acredita-se que foi marcante para consagrados artistas, como Edgar Allan Poe e também Mary Shelley, criadora do romance de terror gótico “Frankenstein” (1818).
Diga-se de passagem, o interessante filme de Ken Russel, “Gothic” (1986) – que discorre ficcionalmente sobre a noite em que Mary Shelley teve a inspiração para criar sua obra-prima –dá vida, em uma de suas fortes cenas, a uma recriação fiel da obra de Fuseli.
Assim como os sonhos em geral têm vínculos inumeráveis com a cinematografia, não se pode negar que os pesadelos são a grande matéria-prima do cinema de horror. Os pesadelos e suas expressões nas artes incitam sempre importantes reflexões sobre nossa divisão interna como sujeitos – manifesta na conflituosa relação humana com seus desejos.
Por Marlos Terêncio
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